29 de Abril de 2024

Repercussões de “O Avesso da Pele” em Mato Grosso do Sul

Segunda-feira, 08 de Abril de 2024 - 08:13 | Redação

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Repercussões de “O Avesso da Pele” em Mato Grosso do Sul

Paulo Marcos Esselin *

No começo do mês de março de 2024, passou a circular nas redes sociais e pela mídia um vídeo atribuído à Profa. Janaína Andréa Halmenschlager Venzon, diretora de uma escola pública localizada em Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul (1). 

No vídeo, ela apresenta um alerta sobre o livro “O Avesso da Pele”, publicado em 2020 e vencedor do Prêmio Jabuti em 2021, escrito pelo Prof. Dr. Jeferson Tenório, renomado escritor e ativista carioca radicado em Porto Alegre (2).

Segundo a crítica apresentada pela diretora, que até então assume não ter lido o livro em sua totalidade e com a devida atenção, a publicação traria um vocabulário de baixo calão e apresentaria narrativas sobre cenas de sexo e a sexualização de certos personagens (3). 

Disse que estaria preocupada com os estudantes e lamenta que o governo federal, através do Ministério da Educação, tenha adquirido a obra literária para ser trabalhada com discentes do ensino médio. 

Na ocasião, ainda sugeriu que os duzentos exemplares enviados à escola fossem recolhidos. Com essa atitude, ela manifesta o seu compromisso com a educação dos estudantes do estabelecimento escolar sob sua direção.

Tão logo o vídeo veio à tona, a apreciação veiculada pela referida diretora passou a funcionar como combustível na fogueira da estapafúrdia polarização odienta e maniqueísta que assola a sociedade brasileira: “esquerda” versus “direita”. 

A bem da verdade, o romance “O Avesso da Pele” é uma obra de ficção que trata de vários assuntos correlacionados entre si, como, por exemplo, racismo, violência policial, qualidade da educação pública, precárias condições de ensino e desigualdades enfrentadas por estudantes e docentes. 

Um tema abordado pelo autor do livro diz respeito à trágica herança da escravidão e, consequentemente, do racismo estrutural que assola o Brasil e a todo o continente americano desde 1492. 

Significa dizer que em sua premiada publicação, o Prof. Dr. Jeferson Tenório trata do racismo que, ao mesmo tempo, estrutura relações sociais assimétricas de poder, exploração e dominação, e formas conscientes e inconscientes de pensamento (4). 

Como dizia Nelson Mandela, ninguém nasce racista, isto é, ninguém nasce odiando outra pessoa por conta de sua cor da pele, origem etnicorracial e/ou religião. As pessoas aprendem a odiar e a serem racistas a partir do meio social em que vivem. 

Da mesma forma, podem ser ensinadas a amar e a serem solidárias umas com as outras, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto, como defendia o líder sul-africano.

Paulo Freire, educador brasileiro muitíssimo prestigiado internacionalmente, já falava sobre isso de outra maneira, ao defender uma educação amorosa para mudar positivamente a sociedade brasileira e o mundo. Portanto, como ninguém nasce racista, torna-se correto afirmar que as pessoas aprendem a ser racistas na vida em sociedade, como nas famílias, escolas e redes sociais, dentre outros lugares físicos ou virtuais.

O racismo e a ideia  de raça ou racialização são invenções do colonialismo e do imperialismo criados na Europa. São produtos de séculos da escravidão de pessoas negras e indígenas, genocídio, usurpação de territórios dos povos originários e, consequentemente, a exploração de milhões de pessoas e imensos recursos ambientais na América Portuguesa. 

Embora a escravidão tenha sido oficialmente abolida em 1888, o Estado nacional ainda não conseguiu se retratar à altura com a população negra e indígena, que forma a maioria das pessoas pobres e vítimas de várias formas de violência no país. No entanto, esta realidade, que é trazida à tona na obra “O Avesso da Pele”, especialmente para tratar da população negra, não teria sensibilizado aquela diretora, que, salvo melhor juízo, não fez qualquer vídeo com comentário público a respeito do assunto.

Diante das repercussões da polêmica, das vinte e sete unidades da Federação, até pouco tempo apenas três tinham deliberado pela retirada dos exemplares do livro das bibliotecas de escolas públicas. Dentre elas, está o estado de Mato Grosso do Sul, o “Texas brasileiro” ou o estado onde quem não tem boi seria boi, como dizem alguns escritores regionais.

Na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, o assunto foi tratado de afogadilho. Coube ao deputado Prof. Rinaldo Modesto levar a questão a seus pares. Segundo ele disse: “Não podemos permitir o acesso dos alunos ao livro com uma linguagem pornográfica. Isso representa a banalização do sexo e não tem relação com discriminação”. 

Na ocasião, a deputada Lia Nogueira afirmou o seguinte: “O livro é nojento. Não trata de educação sexual, mas trata o sexo de forma banal”. O deputado Caravina, por sua vez, posicionou-se da seguinte maneira: “Defendo que todos os exemplares sejam devolvidos, pois não tem cabimentos [sic.] os alunos terem acesso a um material de baixo nível. Embora, tenha se limitado a ler apenas duas das 100 páginas [sic.] do livro. 

Outra parlamentar, Mara Caseiro, acompanhou a posição de seus colegas: “Quem quiser ler a obra, pode comprá-la em qualquer livraria, mas a distribuição nas escolas não podemos admitir. O palavreado vulgar usado realça a mais triste condição humana”. 

Já o deputado Zé Teixeira, esclareceu que “viu” o discurso de um deputado da Assembleia Legislativa de Goiás e concluiu que “aquele livro não aceito para minhas crianças” (5). 

Em consequência disso, o governador do estado, Eduardo Ridel, ao acolher as críticas enviadas pelos parlamentares contrários à obra, determinou que todos os exemplares do  livro fossem recolhidos de setenta e cinco escolas públicas estaduais.

Observa-se aqui que tanto aquela diretora sul-rio-grandense quanto o governador e os citados deputados estaduais de Mato Grosso do Sul não leram atentamente “O Avesso da Pele”, tampouco podem ser considerados críticos literários. 

Mesmo assim, desqualificaram e condenaram a obra sob alegação de defenderem a moral e os bons costumes que deveriam nortear a formação de estudantes em escolas públicas estaduais. Ao fazerem isso, involuntariamente também promovem a divulgação e a vendagem do livro.

Paradoxalmente, muitos parlamentares sul-mato-grossenses ou radicados em Mato Grosso do Sul, autodeclarados como de direita e defensores da moral e dos bons costumes da família tradicional, promoveram um silêncio ensurdecedor quando um pedreiro autoidentificado como bolsonarista, acostumado a promover apologia à supremacia branca nas redes sociais, deu uma espécie de safanão numa criança negra, conforme noticiado pela imprensa: “O pedreiro bolsonarista Kelver de Miranda, de 32 anos, agrediu uma garotinha de 4 anos na 2ª. feira (11.mar.24), dentro Escola Municipal Professora Iracema de Souza Mendonça, no Bairro Universitário, em Campo Grande (MS).

 Nas redes sociais, Kelver defende ideias da extrema direita, deixando claro que é racista e pró-nazismo. Para agredir a garotinha, o homem invadiu um espaço proibido para adultos, ofendendo funcionários da escola. 

O ataque de fúria de Kelver ocorreu após a aluninha negra dar um abraço de bom dia no garoto, seu filho, um garotinho branco”(6). Inicialmente, o caso foi tratado como “contravenção” e não como crime de racismo (7). Contudo, a OAB teria se comprometido a analisar a denúncia de racismo contra a criança negra de apenas quatro anos de idade (8).

O caso ocorrido em Campo Grande é emblemático para a constatação apresentada anteriormente, qual seja: ninguém nasce racista, pois as pessoas aprendem a ser racistas na vida em sociedade, assim como podem aprender a ser solidárias e amorosas entre si. Portanto, ao se abraçarem fraternalmente, as duas crianças deram provas de que a cor da pele não importaria para uma amizade infantil. 

Quem agiu de forma preconceituosa foi o pai do menino, que no dia 11 de outubro de 2018 teria feito uma postagem criminosa nas redes sociais com sua própria imagem em pose de suposto militar, na qual há dois cartazes com os dizeres “Morte a Negrada. Bolsonaro Presidente”, sendo um com a imagem da suástica do nazismo e outro com a de um revólver (9). No caso, importa registrar que apologia ao nazismo é considerado crime à luz da legislação brasileira (Lei n. 7.716/1989).

Em suma, percebe-se que o que mais tem incomodado algumas pessoas em relação ao “O Avesso da Pele” não são as palavras registradas em algumas de suas páginas, haja vista que seus críticos mais ferrenhos sequer o leram atentamente. Fosse apenas por aversão a palavras de baixo calão, extremistas não teriam feito campanha e votado em certo ex-presidente inelegível. 

O incômodo não explicitado e, portanto, subliminar reside no fato da premiada obra ter sido escrita por um reconhecido professor, escritor e ativista negro, cujas ideias não coadunam com certos ideais moralistas defendidos por falsos patriotas e pseudonacionalistas. 

Soma-se a isso o fato da publicação abordar a temática do racismo estrutural e outros problemas que assolam a maioria da população brasileira, constituída por pretos, pardos e indígenas. 

Ocorre que no Brasil e em outros tantos países, como a Espanha, ser negro, talentoso e antirracista incomoda a muitas pessoas. Os casos de racismo registrados contra o jogador de futebol Vinícius Júnior, atacante do Real Madrid, estão aí para dirimir dúvidas.

Nota-se ainda que em Mato Grosso do Sul foi instalada, pois, uma espécie de censura dos tempos de chumbo. Daqui em diante, escritores como Aluízio de Azevedo, Jorge Amado, Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e muitos outros poderão ser censurados e recolhidos da biblioteca de escolas públicas. 

Os censores de agora são idênticos aos incautos dantes e apoiadores da ditadura militar. O que desejam é tão somente transformar trabalhadores e cidadãos em bois mansos para neles colocar a canga da subalternidade colonialista, agora transvestida com outras roupagens.

* Paulo Marcos Esselin é professor aposentado da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul - UFMS

Referências:

(1) Vídeo “Polêmica: Livro ‘O avesso da pele’ será recolhido de escolas”. Publicado no canal Planeta News, São Luiz, 7 mar. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FQ0nl78X5ZA. Acesso em: 23 mar. 2024.

(2) TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

(3) KOBER, Julian. Entenda a polêmica envolvendo o livro “O Avesso da Pele”. Portal Gaz, Santa Cruz do Sul, 4 mar. 2024. Disponível em: https://www.gaz.com.br/entenda-a-polemica-envolvendo-o-livro-o-avesso-da-pele/#:~:text=“O%20Avesso%20da%20Pele%20foi,descrever%20cenas%20de%20atos%20sexuais. Acesso em: 23 mar. 2024.

(4) Para saber mais sobre o assunto, ver: EREMITES DE OLIVEIRA, Jorge; DIALLO, Alfa Oumar. Racismo estrutural e carreiras jurídicas publicas no Brasil. Cadernos do LEPAARQ, Pelotas, 20 (39): 321-346, 2023. Disponível em: https://www.academia.edu/104037618/Racismo_estrutural_e_carreiras_jurídicas_publicas_no_Brasil. Acesso em: 26 mar. 2024.

(5) GIMENES, Heloíse. Deputados estaduais repudiam distribuição de livro “O Avesso da Pele”. A Crítica, Campo Grande, 5 mar. 2024. Disponível em: https://www.acritica.net/editorias/politica/deputados-estaduais-repudiam-distribuicao-de-livro-o-avesso-da-pele/723420/. Acesso em: 3 abr. 2024.

(6) PAI bolsonarista agride garotinha negra que abraçou seu filho na creche (vídeo). MS Notícias, Campo Grande, 12 mar. 2024. Disponível em: https://www.msnoticias.com.br/policia/pai-bolsonarista-agride-garotinha-negra-que-abracou-seu-filho-na/147434/. Acesso em: 3 abr. 2024.

(7) JESUS, Marta de. Episódio de pai que deu safanão em aluna de 4 anos é tratado como contravenção. Primeira Página, Campo Grande, 13 mar. 2024. Disponível em: https://primeirapagina.com.br/seguranca/episodio-de-pai-que-deu-safanao-em-aluna-de-4-anos-e-tratado-como-contravencao/. Acesso em: 3 abr. 2024.

(8) ZURUTUZA, Anahi. OAB vai analisar denúncia de racismo contra criança. Campo Grande News, Campo Grande, 20 mar. 2024. Disponível em: https://www.campograndenews.com.br/cidades/capital/oab-vai-analisar-denuncia-de-racismo-contra-crianca. Acesso em: 3 abr. 2024.

(9) TEODORO, Plínio. “Morte à negrada. Bolsonaro presidente”, diz post nazista de agressor de menina de 4 anos. Revista Fórum, São Paulo, 14 mar. 2024. Disponível em: https://revistaforum.com.br/brasil/2024/3/14/morte-negrada-bolsonaro-presidente-diz-post-nazista-de-agressor-de-menina-de-anos-155669.html. Acesso em: 3 abr. 2024.

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